sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A LAGOA DOS NEGROS

A LAGOA DOS NEGROS
José Ribamar Bessa Freire
17/01/2010 - Diário do Amazonas

Os índios mapuches e os camponeses que vivem às margens de uma lagoa, aosul do Chile, juram que, de vez em quando, aparecem boiando no espelhod’água cabeças negras, com cabelo pixaim. Dizem que as cabeças vãosurgindo, uma depois da outra. Dizem que ficam de bubuia, flutuando por uminstante fugaz e, depois, voltam para o fundo da lagoa, conhecida, porisso, como Laguna de los Negros. Algumas histórias que ainda hoje circulamfalam em oito cabeças, outras em vinte e até mais. Já tentaram fotografar as aparições, mas elas se mostram apenas em umafração de segundo. Só quem pode vê-las é o morador da região, que sabe dascoisas. Para os citadinos desinformados, vindos de fora, elas sãoinvisíveis. Aí, como nada vêem, esses analfabetos da oralidade acham quetais “visagens” e “histórias de assombração” não passam de “fantasia deíndio”, “superstição de camponês”, “crendice absurda”, “invenção”,“mentira” ou, no melhor dos casos, “puro folclore”, incompatível com amodernidade, a tecnologia, o pensamento científico, a metrópole, ainternet.Foi aí que um historiador, para quem só vale o que está escrito, vasculhouarquivos em busca de pistas que explicassem o fato. Descobriu nadocumentação antiga que o colonizador espanhol decapitava os índios ouamarrava uma pedra no pescoço deles, atirando-os no fundo daquela lagoa,que ainda guarda o mistério e o encanto do tempo em que foi mais larga eprofunda.O último registro escrito dá conta de um motim ocorrido em janeiro de 1804no navio negreiro Prueba, quando 72 escravos trazidos da África em jaulas,como bichos, se revoltaram, mataram 18 marinheiros e exigiram que ocapitão, chamado Carreño, voltasse pro Senegal. No retorno, um navionorteamericano atacou o barco e trucidou os revoltosos. Oito sobreviventespresos – um deles de nome Mure - foram condenados à morte e atirados nofundo da lagoa, de onde, de tempos em tempos, emergem.As apariçõesO pesquisador uruguaio Nestor Ganduglia, que sabe ler oralidades,considera as aparições como uma estratégia de preservação da memóriapopular. É assim que as pessoas humildes fazem: não escrevem livros, masgravam suas experiências, quase sempre amargas e dolorosas, na paisagem,nos costumes, nos rituais, nos cantos, nas vozes que transmitem suasnarrativas lendárias, criando redes subterrâneas que mantêm a memória vivaem um mundo dominado por versões oficiais – ele diz.A História oficial - relato escrito dos vencedores - apaga os crimeshediondos e afoga as atrocidades dos poderosos no lago do olvido. Milharesde ossadas permanecem insepultas nas águas da nossa América. Para seremlembradas é que, de vez em quando, sobem à tona na voz do povo, queresiste ao esquecimento e manifesta seu assombro, ao repassá-las oralmentede uma geração a outra, transpondo as barreiras do tempo.Eis o que eu queria dizer: o Brasil é uma enorme Lagoa dos Negros. Oshorrores da escravidão foram esquecidos e os bandeirantes, queassassinaram índios, transformados em heróis. As narrativas dascomunidades quilombolas, dos povos de terreiro e das aldeias indígenascontinuam fora da sala de aula, do museu, do monumento e da mídia, apesarde uma lei recente obrigar sua inclusão nas escolas.O atual debate sobre a ditadura militar revela como a memória é apagada.Durante vinte anos, a repressão política seqüestrou, prendeu, espancou,torturou e exilou milhares de pessoas, deixando um saldo de 144 mortos sobtortura e 125 desaparecidos, cujos cadáveres não foram localizados, entreeles o do amazonense Thomaz Meirelles, aqui citado no domingo passado.O ministro da Defesa, Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça no governo FHC,de forma apressada, declarou ontem que os militares brasileirosdesaparecidos sob os escombros no terremoto do Haiti não estão mais vivos.“A expressão desaparecido é técnica. Significa corpo não encontrado” –disse, prometendo localizar os cadáveres. Não quer, porém, igualtratamento aos desaparecidos políticos, que permanecem soterrados nosinacessíveis arquivos dos órgãos de repressão.As memóriasNa disputa pela memória, o presidente Lula assinou decreto, contendo ummontão de resoluções aprovadas na 11ª. Conferência Nacional de DireitosHumanos, entre as quais a criação da Comissão da Verdade, encarregada deesclarecer “as violações de direitos humanos praticadas no contexto darepressão política” durante a ditadura militar.Lula explicou, anteontem, em entrevista a TV Mirante, no Maranhão, que odecreto manifesta apenas uma intenção: “O governo pode aceitar tudo, podeaceitar 80% ou 30%. Uma parte pode ser transformada em lei, a outra ficano programa”. A proposta pode ou não ser encaminhada como projeto de leiao Congresso Nacional, onde vai ser analisada, discutida, emendada evotada, podendo ser aprovada ou rejeitada. O que a Comissão da Verdade vaifazer depende disso tudo e dos poderes a ela atribuídos.Embora a Comissão da Verdade seja apenas uma proposta indicativa, bastantetímida, sem poder legal, mesmo assim os comandantes militares reagiramcontra ela como senhores e donos da memória nacional, papel que não lhescabe constitucionalmente . Não querem sequer que a idéia seja discutida.Foram intransigentes. Exigiram que a expressão “repressão política” fosseapagada no novo decreto. Foram obedecidos. Os arquivos militares continuamfechados. Só nos resta resistir, mantendo os torturados de bubuia no lagode nossa memória.A tortura é considerada ilegal até mesmo pela legislação arbitrária dequalquer ditadura. Mas os torturadores só foram julgados – como Pinochetno Chile, depois de preso em Londres - quando os países que praticaramesse crime hediondo foram redemocratizados: Chile, Argentina, Uruguai,Portugal, Espanha, Grécia. Os processos judiciais atestaram a existênciada democracia e contribuíram para recuperar a memória.A Argentina acaba de abrir os arquivos da ditadura. O Chile investiu US$20 milhões para construir o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, umedifício de cinco andares, projetado – oh ironia! – por um escritóriopaulista de arquitetura. Tem um arquivo no subsolo aberto para consulta,milhares de fotos, cartazes, textos e testemunhos em vídeos com criançasem busca de seus pais e avós, além de um espaço – o velatón – onde oacrílico reproduz as velas que eram acesas nos locais de execução.Revanchismo? Insensatez? Não, apenas compromisso com a História. Cutucar aonça com vara curta? Pode ser se não sabemos o tamanho da nossa vara. Masninguém quer torturar os torturadores, apenas que respondam, dentro dalei, pelos atos que cometeram, assegurando- lhes um direito que eles nãoconcederam às suas vítimas: o de ampla defesa. A impunidade delescontribui para que, ainda hoje, a tortura continue praticada em nosso paíscontra presos comuns, de origem pobre. Muitas cabeças ainda vão boiar no lago da memória, até que o Brasil,efetivamente, se redemocratize e tenha consciência de que o futuro só setransforma se encararmos o passado. Por isso é que a memória é tão importante.